Eucaristia e crise do matrimônio (Primeira parte)

2015-08-20
A reflexão do Cardeal Ennio Antonelli com vistas ao próximo Sínodo


Bruno Esposito, OP[1]


“Julgo que este escrito seja capaz de conjugar e reiterar a preciosa dignidade do matrimônio cristão, como tem sido vivido na Igreja Católica, com a compreensão das situações concretas e complexas que condicionam a responsabilidade subjetiva dos cônjuges. O que se salienta é que o tesouro de dignidade e de graça confiado à Igreja exige que seja reforçado e ilustrado também em favor de quem se encontra em situações críticas ou de fragilidade: é aumentando a luz que são geradas renovação e força para percorrer o caminho” (p. 6). Essas palavras extraídas do Prefácio do Cardeal Sgreccia ao conciso e denso texto do Cardeal Antonelli sobre a crise do matrimônio ou ainda do matrimônio em crise e o sacramento da Eucaristia, sintetizam de modo claro e preciso o valor de seu conteúdo e, sobretudo, a sua utilidade, a fim de enfrentar as várias problemáticas da e sobre a família cristã hoje em dia, sobretudo tendo em vista o próximo Sínodo dos Bispos.

Antes de tudo, o que nos parece importante notar é ser o texto fruto de uma sólida formação e longa experiência do Autor como pastor. E é por isso que ele conseguiu com o presente texto dar uma contribuição sintética e autorizada aos problemas da crise do matrimônio, da “família tradicional” e da eventual admissão dos casais divorciados recasados à Eucaristia. Após uma breve preliminar, na qual são explicados, sobretudo, os motivos, o significado e o fim de seu escrito, o Autor trata das várias temáticas em oito concisos e breves capítulos. É antes de tudo importante notar a sua firme convicção de ser hoje a principal urgência pastoral a formação de famílias cristãs para serem testemunhas e modelo na sociedade contemporânea, capazes de manifestar, na realidade da vida cotidiana, que o matrimônio cristão não é uma utopia, mas uma bela possibilidade concreta e possível de ser realizada. De fato, são esses casais, mais do que quaisquer outros, “que podem anunciar o Evangelho da família, ‘não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria’ (Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 14)” (p. 12). Concretamente, considerando o contexto cultural pós-cristão, a pastoral deverá se concentrar de modo todo particular na educação teórica e prática dos adolescentes e jovens para o amor cristão, entendido como dom de si, comunhão e respeito pelos outros; na séria preparação dos noivos para o matrimônio, através de itinerários adaptados às diversas situações espirituais, culturais, sociais, de modo que não seja somente algo válido, mas também frutuoso; no acompanhamento dos esposos, de modo particular nos primeiros anos do matrimônio, através de encontros periódicos liderados por casais de esposos e especialistas. Em todo caso, o que deve estar na base deste compromisso e o deve inspirar, é o ponto decidido e inegociável da indissolubilidade do matrimônio cristão, rato e consumado, que se fundamenta no amor oblativo dos cônjuges prometido para a vida e aberto para a vida. À luz deste ponto decidido, o Autor, partindo da Sagrada Escritura e da Tradição, demonstra o nonsense e a intrínseca contradição da mera hipótese da possibilidade em admitir os divorciados recasados à Eucaristia enquanto durar dita união; como visto acima, o Autor observa, justamente, que isso se aplica também a outras situações análogas de objetiva desordem moral. “Esta exclusão não discrimina os divorciados recasados em comparação a outras situações de grave desordem objetiva e de escândalo público. Quem tem o hábito de blasfemar deve se esforçar seriamente para se corrigir; quem cometeu um furto deve restituir; quem danificou o próximo material ou moralmente, deve reparar. Sem um compromisso real de conversão, não há absolvição sacramental e admissão à Eucaristia. Não devem ser admitidos todos os que ‘perseveram com obstinação num pecado grave manifesto’ (CIC, 915). Não faz sentido, portanto, pensar em fazer uma exceção para os divorciados recasados que não se esforçam em mudar sua forma de vida, seja se separando, seja renunciando às relações sexuais. Exclusão da comunhão eucarística não significa exclusão da Igreja, mas somente comunhão incompleta” (p. 15-16), que exige uma aproximação atenta e misericordiosa da parte da Igreja. Sobre isso, não se pode esquecer que, embora não seja possível pelos motivos vistos a admissão aos sacramentos da Penitência e da Eucaristia, isso não exclui o acesso à misericórdia de Deus através de outras vias e que, em todo caso, a graça de Deus não está ligada aos sacramentos (cf. Familiaris Consortio, 84; Reconciliatio Poenitentia, 34; “Sciendum tamen quod, sicut Deus virtutem suam non alligavit sacramentis quin possit sine sacramentis effectum sacramentorum conferre...”: S. Th., III, 64, 7 c). Em seguida, o Autor examina, em particular, os n. 25, 41 e 52 da Relatio Synodi 2014, que tratam da aproximação pastoral direcionada às pessoas que tenham contraído o casamento civil, que são divorciadas e recasadas, ou ainda que vivem em coabitação, e explica mais detalhadamente, sempre à luz da Escritura e do Magistério, o nonsense de sua admissão aos sacramentos, mesmo somente em determinadas circunstâncias e situações. Em particular, no que diz respeito às uniões ilegítimas escreve, à luz do princípio — infelizmente com frequência esquecido por mais de um — bonum ex integra devido malum ex quocumque defectu: “Certamente também as uniões ilegítimas contêm autênticos valores humanos (por exemplo, o afeto, a ajuda recíproca, o compromisso compartilhado para com os filhos), porque o mal é sempre misturado com o bem; jamais existe em estado puro. Entretanto, é necessário evitar apresentar tais uniões em si mesmas como valores imperfeitos, ao passo que se trata de graves desordens. [...] A lei da gradualidade afeta somente a responsabilidade subjetiva das pessoas e não deve ser transformada em gradualidade da lei, apresentando o mal como bem imperfeito. Entre o verdadeiro e o falso, entre o bem e o mal não há gradualidade. Enquanto se abstém de julgar as consciências que somente Deus vê, e acompanha com respeito e paciência os passos em direção ao bem possível, a Igreja não deve cessar de ensinar a verdade objetiva do bem e do mal, mostrando que todos os mandamentos da lei divina são exigências do amor autêntico...” (p. 31-32 e cf. também p. 42-44 onde retoma e explica mais analiticamente a diferença entre “lei da gradualidade” e “gradualidade da lei”). Isto se aplica, obviamente, também às uniões homossexuais. Não é concebível, portanto, um perdão da parte de Deus sem conversão; e isto vale para todas as situações possíveis examinadas, mas de modo particular nos casos de casamentos fracassados, inclusive pela culpa de somente um dos cônjuges, que nunca poderá justificar um novo matrimônio, considerando a validade do precedente (cf. p. 34). Não nos esqueçamos que a este respeito temos definições claras do Concílio de Trento, que não podem ser postas em discussão, a não ser minando a credibilidade da própria instituição conciliar e do Magistério (cf. Concil. Trident., sess. XXIV, c. 5; Concil. Trident., sess. XXIV, c. 7; Pio XI, Casti connubii). Nesta perspectiva, examina e critica as práxis utilizadas pelas Igrejas Ortodoxas quando concedem permissão para um novo casamento após a dissolução do precedente (cf. p. 35-36; 51).


[1] Cf. Antonelli, Ennio. Crisi del Matrimonio & Eucarestia. Milano 2015, 72 p., ISBN 978-88-8155-654-0. Publicado originalmente em Zenit (1/8/2015). Trad. do italiano: Felipe de Azevedo Ramos, EP